# 20❦ Amores, dores e pipocas literárias
A dívida sempre encontra você — seja financeira, emocional ou afetiva. Pode não ser sua: às vezes, é um legado silencioso da família. Mas cedo ou tarde, ela cobra. E nunca vem sozinha.
Lembre-se: a culpa é a irmã mais velha da dívida — chega antes, pesa mais, e nunca esquece o caminho de volta.
Ao desabafar com uma amiga íntima, chegamos a uma constatação inquietante: a dívida sempre nos alcança. Pouco importa sua natureza — pode ser bancária, herdada dos pais, nascida de um relacionamento ou de uma escolha mal feita. Mais cedo ou mais tarde, ela exige resposta. Penso em histórias que ouvi em consultório, relatos de vidas marcadas por dívidas invisíveis, mas profundamente sentidas. E então surge a pergunta que ecoa em muitas dessas narrativas: seria possível traçar uma ligação entre a culpa, a dívida e a herança emocional que ambas deixam em nós — ou talvez, para nós? E afinal, que tipo de herança é essa que carregamos sem saber, mas que nos molda silenciosamente?
Filho de uma mãe solteira nos anos 80, que engravidou de um cara casado e que, obviamente não quis saber da criança (e muito da mulher que engravidou), lidou duas vezes com o sentimento de abandono e rejeição. Pois, aos 30 anos, descobriu que sua mãe havia mentido sobre o seu verdadeiro pai. Quando ela descobriu que estava grávida, namorou com outro homem e tentou afirmar que o filho era dele. A história não deu certo. Tentaram exame de sangue e, claro, deu negativo. O filho não era dele e ela, que já era chamada de “vagabunda” pela família, também era conhecida como “mentirosa”. E o filho? Cresceu junto com a mãe, os avós e alguns tios na mesma casa.
Aos 30 anos o filho vem a saber a história toda e a mãe, ao levantar uma tábua da casa, em completo silêncio, revela a foto do verdadeiro pai. Ela não conta o que aconteceu e nem o motivo de ter mentido, o vazio supera qualquer palavra. Ela guarda a verdade assim como a culpa dentro de si mesma. Mas como Freud nos ensina, “nenhum ser humano é capaz de esconder um segredo. Se a boca se cala, falam as pontas dos dedos’. O sentimento de abandono e o vazio que ela carregara ao longo da vida estavam personificados tanto na quantidade de gatos quanto no abandono de si mesma e da própria casa em que morava.
A vida da mãe fora interrompida ainda na gravidez: no último ano de faculdade, proibiram-na de tirar as fotos de formatura — “mãe solteira não pode aparecer em público”, decretou a avó da criança. Com o tempo, a família resignou-se ao nascimento do “sem pai conhecido”, e o avô, em gesto inesperado para um homem tradicionalista, quase septuagenário e patriarca da casa, recebeu o menino com festa.
O tempo, então, bordou um silêncio sobre a ausência: a palavra “pai” se dissolveu na presença firme do avô, que repetia, talvez para aplacar a dor de mãe e filho: “Pai é quem cria; eu sou teu pai”. Assim se passaram trinta anos, até que, numa tarde de terapia, o inconsciente rompeu suas amarras, e a dor antiga, esquecida sob tantas camadas, irrompeu como uma tampa de bueiro lançada ao céu pelo inesperado de uma enchente.
A dívida, enfim, viera à tona: da mãe para com o filho, que nunca soube quem era seu pai; do filho para com a mãe, que o criou entre silêncios e episódios de fúria; do pai, ausente, que jamais saberá quem é o filho. O único isento de toda dívida era o avô — já falecido havia décadas — que, em vida, soubera apenas amar.
O que se forjou ao longo dos anos? A ausência do pai, preenchida — sempre em tentativa — pela presença do avô, tornou-se o exemplo silencioso de como resistir às tempestades. Seu riso, congelado no tempo, ainda ecoa, carregado de uma saudade maior do que uma cidade inteira.
Mas, à medida que o tempo avançava, o abandono e a solidão da mãe se adensavam, assim como sua dificuldade em lidar com as finanças. Dívidas feitas junto a amigos — e cobradas, anos depois, pelos filhos dos que já haviam partido — são o testemunho doloroso de que há débitos, tanto de mãe quanto de filho, que nem mesmo a vida é capaz de saldar.
Mesmo após tantos anos de terapia, existem questões que enlaçam o filho e são difíceis de se soltarem: a dependência econômica e afetiva da mãe, a crença de que já não é mais possível estabelecer os laços familiares novamente e a dificuldade em acreditar que “tudo irá ficar bem”. Não ficou. E não ficará da maneira com que se deseja, afinal, o encontro com o real da vida é sempre o encontro com um Outro que também possui sua imprevisibilidade.
Ao falar da herança de uma vida — uma dívida que se insinua tanto no corpo quanto na alma — é inevitável evocar a imagem da criança que, incapaz de compreender o tumulto entre os pais, introjeta a culpa e imagina ser ela própria a origem de toda a discórdia. É nesse terreno de culpas mudas que se lavrou uma das heranças mais profundas do filho: uma ansiedade subterrânea, que, crescendo com ele, o impulsionaria a repetir o ciclo — agora em forma de dívidas financeiras — como se tentasse, inconscientemente, pagar um preço antigo, jamais revelado.
Cartões de crédito estourados, gastos compulsivos, dívidas deixadas com amigos que já não estão mais vivos — e agora seus filhos ameaçam processos, brandindo direitos como espadas invisíveis. A irritação, a intolerância com tudo o que escapa ao controle — tal como a mãe, anos atrás, demonstrava com seus próprios irmãos —, a mente incapaz de cessar o ciclo vicioso de pensar em cada dívida...
Especialmente naquela última: o amigo que, em vida, dissera com um sorriso cansado "não se preocupe, você já fez tanto por mim, mais do que os meus próprios filhos", mas cuja ausência agora se transforma em cobrança, como se a promessa de perdão jamais tivesse existido.
E ninguém pergunta: você pode pagar essas dívidas?
Mas, no fundo, haveria sentido em perguntar?
Ah, como gostaria que fosse o pai — nunca conhecido e que deixou apenas o vazio — a saldar, enfim, a verdadeira dívida: o abandono e a solidão que se acumularam, silenciosas, na vida da mãe e do filho.
Amores, dores e pipocas literárias é uma publicação quinzenal aqui na IS.
Até daqui uns dias!
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