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Em um dos cantos mais remotos e derradeiros do mar de estrelas, uma sonda esférica flutuava em silêncio, operada pelo maior cosmofotógrafo do universo, Aurélio Capa. Naquele momento, algo tão minúsculo quanto um filete de suor escorria pelas suas têmporas enquanto o homem dobrava-se sobre o painel de sua máquina e regulava os parâmetros de abertura de suas cinco lentes.
A sonda T.E.M.P.O. era a mais avançada tecnologia de captura de imagens já concebida e foi desenvolvida especificamente para Aurélio por uma equipe formada por toda a sorte de indivíduos delinquentes, malfeitores e piratas espaciais que diziam-se os melhores construtores de astronaves. Com cada centavo de sua generosa fortuna, Aurélio encomendou sua construção em um ato escandaloso que abalou profundamente sua reputação. Após 37 meses de trabalho rigoroso, a sonda magnífica foi entregue ao seu mecenas. Sem demora e com uma cerimônia de despedida organizada às pressas diante de uma das luas de Júpiter, ele entrou em sua nave e partiu sem demora para as zonas mais inóspitas e silenciosas do universo observável, vivendo anos em confinamento, deixando para a imaginação dos outros os possíveis desfechos de seu destino.
Na época de seu exílio, uma imensa comoção tomou conta de todos os cinturões de asteroides povoados, além de alvoroçar a mídia e os entusiastas da cosmofotografia. O boato mais plausível e também o que ganhou mais forças entre as rodas de conversa e debates acadêmicos que tentaram, sem sucesso, mapear suas razões, foi de que Aurélio Capa havia sido consumido por uma aguda loucura, síndrome de um ego frágil e um temperamento cínico que certamente desperta apenas na ociosa mente de ricaços entediados. Quando ele entrou na T.E.M.P.O. e partiu pelas estrelas como se fosse um mendigo flutuando na nave mais sofisticada de todo o cosmos, não havia dúvida de que havia perdido o juízo.
E mesmo assim, em todos os seus anos de atividade, não houvera ninguém no ramo da cosmofotografia que tivesse conseguido algo sequer próximo de seu talento, seu portfólio, sua fama e certamente sua aparelhagem deslumbrante. Atualmente qualquer amador já possui acesso a grandes satélites com espelhos que refletem o brilho de corpos a milhares de anos-luz de distância e alguns até conseguem registros interessantes de galáxias e conglomerados de estrelas. Os profissionais, por sua vez, têm suas próprias sondas que mergulham além da velocidade da luz e tiram fotos justamente durante o movimento absurdo, suprimindo a dificuldade que as grandes distâncias espaciais impõe à qualquer observação visual. Seus objetos são os eventos cósmicos que se alongavam ao longo de milênios na contagem de tempo padrão e que devido às consequências estranhas da viagem além-luz, conseguiam ser registrados em únicas fotografias. Foi dessa forma que registrou-se, por exemplo, o último instante do cataclisma do Primeiro Sol da Humanidade, e também a Grande Fundição dos Núcleos de Nova Andrômeda e o Pulsar.
Porém, um inconveniente da cosmofotografia – que depois de uns anos passou a ser defendido como não um problema mas sim característica indispensável para o gênero – era que as fotos eram distorcidas pelo movimento do espaço e das câmeras. Ao viajar na velocidade da luz, a impressão é a de que os corpos luminosos se esticavam como manchas de tinta, o que afetava todas as fotos que usavam tal método. Claro que daí nasceram técnicas para driblar a distorção ou mesmo utilizá-la ao favor do registro, fazendo-se evidenciar o movimento e extrair dele o sentido do clique.
É aí que entra a principal revolução da sonda T.E.M.P.O., já que ela era o primeiro e único instrumento capaz de paralisar o movimento das ondas luminosas contra as lentes na velocidade além-luz. O resultado era deslumbrante e um mistério. Era como se a cada clique, Aurélio Capa conseguisse de alguma forma congelar o universo e dispor diante de sua câmera todos os objetos cósmicos, em toda sua magnitude, ao seu bel prazer. Ele foi o homem que não se dobrou perante seu objeto, mas o conquistou e fez de todo o universo o seu estúdio de fotografia.
Ninguém conhecia o segredo mágico da sonda de Aurélio Capa. Houveram especulações, é claro, mas nenhuma foi capaz de conceber a viabilidade prática do único feito que tornaria aquelas fotografias daquela magnitude possíveis: a viagem no tempo. E o que se concluiu era que ou Aurélio Capa era um vigarista de marca maior e havia falsificado seus grandes trabalhos com um primor sobrenatural, ou era a maior mente criadora de todos os tempos por ter desvendado esse segredo.
Mas independente do que foi dito, sussurrado, imaginado, confessado ou denunciado em todos os jornais, confiáveis ou não, à respeito de Aurélio Capa e sua máquina, nenhum boato foi capaz de diminuir seu talento, muito menos diminuir o assombro que acompanhava todos os seus lançamentos. E por mais que se odeie admitir entre os grupos mais abastados da sociedade, toda vez que Aurélio retornava do exílio com uma nova exposição tinha a atenção de todo o universo apenas para si.
Muitos anos depois, naquele instante derradeiro em que um filete gelado de suor escorria pelas suas têmporas, longe de qualquer sinal da civilização, a sonda T.E.M.P.O. e seu criador estavam diante do que seria a fotografia mais espetacular de todos os tempos e que marcaria o fim da lendária carreira de Aurélio Capa.
Mesmo com toda a aparelhagem de simulação, a origem do universo e de tudo que se concebe dentro dele como realidade, continuou por outros milhares de anos como um dos mais antigos mistérios do universo. E por mais que toda a ciência já fosse bem precisa e definitiva quanto à descrição subatômica e física da transformação do ponto infinitesimal de densidade suprema em algo infinitamente maior que se conheceu como universo, não há nada além de simulações de computadores e representações do que hipoteticamente aconteceu e de como todo o universo supostamente se parecia naquele instante.
A grande ambição da carreira de Aurélio Capa, e o verdadeiro motivo de construir a T.E.M.P.O., era conseguir se lançar fisicamente até aquele instante derradeiro fotografar em um único clique o universo inteiro, menor do que um único átomo, no mais minúsculo dos instantes antes da sua expansão. Toda a empreitada consistia não apenas na viagem estrondosa até aquele passado tão remoto, como também superar as restrições físicas de um universo subatômico. Para isso, Capa trespassou todos os limites de sua moralidade e também da ciência para construir um motor além-luz sem precedentes de uma única viagem. Para isso, seria necessária uma quantidade de energia suficiente para alimentar as estrelas de uma galáxia por cerca de um milênio e a única indústria que poderia fornecer os meios para tamanha ambição era a bélica. Por isso, Capa passou anos de sua vida financiando a partir de empresas fantasma e sob o subterfúgio de pseudônimos a criação e desenvolvimento de armas de destruição planetárias, capazes de gerar, em somatória, a energia desejada. Ao longo de cinquenta anos, cerca de vinte planetas cuja soma de habitantes supera a casa dos trilhões, foram completamente aniquilados para a realização secreta de sua ambição. E enquanto os militares cuidavam da energia, seu trabalho foi desenvolver as mais sofisticadas técnicas da cosmofotografia a partir da micro viagem no tempo, o conceito de retornar segundos no passado para assim reverter o movimento da luz e criar a ilusão de que a paralisou, tirando assim suas fotos. Dessa forma, porém em uma escala maior, ele seria capaz de retornar ao momento decisivo e tirar uma única fotografia rápido o suficiente para salvá-la em um enorme banco criptográfico e enviá-la para o futuro, dando ao universo um vislumbre de sua criação.
Após anos de segredo e exílio, finalmente os preparativos estavam completos e Aurélio Capa se preparava para dobrar a luz do universo uma última vez. A contagem regressiva carmesim em seu painel piscava, indicando que dali a um minuto, a sonda singraria até o primeiro e último limite de tudo.
Ele teclou algumas especificações e conferiu mais uma vez os parâmetros de sua câmera. Aos quarenta segundos confirmou que todas as instâncias automáticas estavam operantes – uma garantia de que a foto seria tirada mesmo no caso provável de sua morte devido à viagem. Faltando trinta segundos, conferiu os sistemas de preservação da sonda, que deveriam ser capazes de preservar a preciosa imagem por trilhões de anos até ser encontrada nas coordenadas que enviou para todos os veículos de comunicação interespacial de seu tempo presente. E por fim, aos vinte segundos, se deixou chorar um pouco, pois afinal, ele estava apavorado.
Dez segundos. Nove. Oito. Sete. Seis. Cinco. Quatro. Três. Dois. Merda. E a sonda espacial T.E.M.P.O. rasgou, pela última vez, todos os tecidos e as leis do contínuo espaço-tempo.
Como planejado por Aurélio Capa, a carcaça fantasma de sua sonda foi encontrada três dias depois de sua viagem, completamente aniquilada pelos trilhões de anos e pelas mãos de saqueadores baratos que depenaram por completo toda sua elegante estrutura. O que sobrou foi pouco mais do que uma carcaça vazia e um pequeno drive de computador preservado com alguma forma de criogenia. Semanas depois, cientistas indicaram que a datação de carbono daquele objeto era de mais de trilhões de anos no passado, um período brevemente anterior ao Big Bang.
A última fotografia de Aurélio Capa circulou em cada linha de transmissão da internet e foi matéria de discussão por décadas, até ser completamente esquecida como mais um grande exagero da mídia, provavelmente gerado por inteligência artificial. Nela, se via um grande e absoluto nada. Nenhuma cor, nenhuma escuridão e também nenhuma forma de luz, apenas o vazio sem cor, inconcebível à nossa imaginação, mas ali impresso nos jornais, nas redes sociais e para sempre nas retinas de todos. No meio daquele nada absoluto, um recôndito e minúsculo ponto de luz, tão preciso e ínfimo que sua presença era espantosa. Não maior do que a cabeça de um alfinete em uma folha de papel sulfite, não que essa medida seja compreensível para aqueles tempos tão remotos.
Junto da curiosa fotografia, veio também uma mensagem de seu realizador, o título de sua obra derradeira:
O universo, tamanho real. - Aurélio Capa. 1920x1920, REGISTRO POR T.E.M.P.O.
Que realização é essa que consome tudo?