#2 — O amor que buscamos nas palavras que calamos: A paciente que sobreviveu à Auschwitz: Parte 2
A Newsletter IS especial e semanal dedicada à quem apoia e contribui mensalmente com o nosso trabalho. Na edição de hoje: psicologia, filosofia e literatura. Conheça nossas outras Newsletters.
Quando viver um sonho é resolver um desejo
A escuta clínica de uma paciente que sobreviveu à Auschwitz Parte 2
“Sim, eu amava muito a minha amiga. Mas nunca tivemos nada de fato. Imagine que em minha religião e ainda mais naquela época, eu achava que era totalmente errado. Mesmo quando me casei, ainda muito jovem, tinha certeza que não gostava de meu marido. Na verdade não sentia prazer algum. Casei para sobreviver, tenho certeza disso hoje, afinal, toda a minha família não estava mais viva”, me relatou a paciente com emoção.
Quando voltávamos ao assunto da amiga que fora enviada para o campo de concentração de Auschwitz, geralmente o diálogo era interrompido por uma crise de coceira nas mãos. A mesma coceira que acometia a paciente, quando o sonho em que ela não conseguia dar a mão ao pai era o tema da sessão.
“A alergia emocional é uma condição que acontece quando o sistema imune reage perante emoções como estresse e ansiedade, levando a alterações no corpo, principalmente na pele. Por esse motivo, os sintomas de alergia emocional normalmente incluem coceira e vermelhidão na pele. As causas da alergia emocional não estão bem definidas, mas parece acontecer porque o estresse e a ansiedade aumentam a produção de catecolaminas, substâncias que levam ao aumento da liberação de cortisol, causando uma reação inflamatória no corpo” (Link).
Independente da questão biológica, era para o sintoma físico relacionado ao conteúdo do que ela estava trazendo para as sessões que eu prestava atenção. Relacionar esse conteúdo com a alergia, foi cada vez ocupando mais “espaço” nas sessões de psicoterapia. Até que aos poucos o questão do desejo dela tanto por dar a mão ao pai e em tocar essa amiga foi ficando cada vez mais latente.
Obviamente, que resumir mais de uma década de análise em duas publicações retira todo e qualquer impacto que esse caso causou em mim. Mas eu sinto que só poderia começar a falar de casos encerrados e de como eles mudaram a minha vida, começando por esse que escrevo agora.
“E como eu viveria algo assim como esse amor agora, com quase cem anos? Quem vai querer estar comigo DAQUELE jeito agora?”, dizia ela se referindo sim ao questionamento mais tematizado nos últimos meses e que era tema recorrente no consultório: a sua idade (avançada?). E para uma senhora quase centenária, à época, ela não usava bengala, enxergava muito bem, não tinha nenhum problema de audição. Mas haviam dores frequentes nas mãos e na lombar. O curioso é que essas dores estão simbolizadas sempre em sonhos. Até que em um dia ela disse que “tenho certeza de que as mãos é a vontade de ir para junto de meu pai e minha mãe e a lombar foi o abraço apertado que meu pai e meu irmão mais velho haviam dado em mim pela última vez”, a dor de uma saudade?, perguntei.
“A somatização ou doença psicossomática é uma doença que se concentra nos problemas emocionais do individuo e representam a ligação direta entre a saúde emocional de uma pessoa que eventualmente se manifestam fisicamente (link).”
Por inúmeras vezes relacionamos que emocionalmente a vivência dos seus desejos, estava ligada diretamente com a maneira com que ela continha sua vontade sexual. Isso desde a mais tenra infância. Ela se lembrava de que quase sempre que encostava em sua amiga, aquela que foi morta em Auschwitz, uma coceira tomava parte do seu corpo. E as palavras da mãe povoavam a sua lembrança: “essas pessoas (se referindo a homossexualidade) que se deitam entre si, estão longe de Deus e envergonham a sua casa, melhor que morram cheias de urticárias para aprenderem A (o A se refere aos ensinamentos da Torá) lição”. Essa foi outra das questões mais difíceis que trabalhamos ao longo dos anos.
Em 1935, Sigmund Freud escreveu uma resposta a uma mãe que havia lhe pedido ajuda com seu filho gay. Apesar das amplas percepções sobre homossexualidade da época, Freud abordou o assunto de outra forma, dizendo à mulher que "não havia motivos para se envergonhar".
"Eu vi na sua carta que seu filho é homossexual. Estou mais impressionado com o fato de você não mencionar esse termo ao passar as informações sobre ele. Posso te perguntar por que você evita o termo?", ele escreveu.
"Homossexualidade certamente não é uma vantagem, mas não há motivos para se envergonhar, não há vícios, não há degradação; isso não pode ser classificado como uma doença; consideramos como uma variação da função sexual, produzida por uma certa contenção do desenvolvimento sexual. Muitos indivíduos altamente respeitáveis da antiguidade e também dos tempos modernos foram homossexuais, diversos homens grandiosos."
Sabe-se há muito tempo que Freud não enxergava a homossexualidade como patologia. Ele acreditava que todos nasciam bissexuais e depois tornavam-se héteros ou gays, por causa dos relacionamentos com aqueles à sua volta (link).
No quinto ano de sua análise, ao chegar eufórica no consultório, antes mesmo de se deitar no divã, ela disse: “como é que os jovens dizem mesmo? ‘Peguei’ a novinha de 80!!!”. Se referindo ao fato de que beijou uma vizinha assumidamente lésbica de 80 anos, que havia se mudado há alguns meses para o mesmo condomínio onde morava. Ao falar sobre isso, ela não se emocionou. Como eu pensava que aconteceria quando ela realizasse o desejo reprimido quase um século. Ao contrário. Ela disse que sabia que agora tinha mais algum tempo de vida, que queria viver um pouco mais. E de fato isso aconteceu. A felicidade é algo de tão poderoso que é capaz de dar muitos anos de vida a mais.
E mais uma década se passa… Até que em um domingo pela manhã a filha dela me liga avisando que sua mãe gostaria de antecipar a sessão. Eu achei muito estranho visto que a paciente nunca havia pedido isso, era extremamente pontual e não mudava o dia e/ou horário da sessão. Antecipamos para a manhã da segunda-feira, o que foi incomum, também, para mim. Ao chegar no consultório ela pediu para ficar sentada e não se deitar. Ficou emocionada e disse que havia sonhado o mesmo sonho, só que dessa vez havia algo diferente nele:
“Lembro que estava nevando muito naquele mês e o trem havia chegado e tinha muito arame farpado. Meu pai me empurrava do trem e eu QUASE caía… Eu não queria ficar sozinha, lembro que esse pensamento estava em mim… E tinha aquela minha amiga que eu amava, que estava no trem — só que dessa vez foi diferente, disse ela me olhando seriamente nos olhos e eu segurando as minhas lágrimas, pois, havia entendido o que ela estava me relatando — e meu irmão e minha mãe também estavam ali, o que é estranho, pois eles não estavam no mesmo trem quando tudo aconteceu. Mas o fato é que dessa vez eu CONSEGUI SEGURAR A MÃO DO MEU PAI E ELE ABRAÇOU.”
Naquela mesmo segunda, pela tarde, ela foi tirar um cochilo como era de costume… Sua filha me telefonou e disse: “a mãe partiu…”
Conta para nós o que achou desse publicação deixando um comentário!
Indicação de Leitura da IS Editora:
Cristian Abreu de Quevedo
CEO e Editor-Chefe da IS. Psicanalista. Filósofo. Crítico Literário. Com graduações e formações nas áreas citadas. Mas segundo ele, o que gosta mesmo, é de jogar RPG, tomar vinho e ler como se não houvesse amanhã.
Assine nosso Substack e convide mais pessoas para nos conhecerem: substack.com/@imperiossagrados
Segue a gente nos perfis no Insta: @imperios_sagrados e @iseditora
Conheça mais o nosso site/blog: imperiossagrados.com.br
Envio de Manuscritos Originais: imperiossagrados@gmail.com
Até a próxima quarta! Obrigado por você estar por aqui e nos apoiar!
Conheça mais sobre nossa Equipe de Escritoras e Escritores na nossa página “Sobre” aqui no Substack!
Que relato comovente, excelente texto!
Emocionante o desfecho...sem palavras.