O que Camus pode fazer pelo seu RPG e o que isso pode fazer por VOCÊ em troca. Aplicações do absurdo a técnicas de interpretação de personagens de RPG de mesa que podem nos ensinar a levar vidas mais saudáveis e construtivas.
Introdução
Olá, pessoas! Este artigo tem algumas metas ambiciosas, sendo elas:
Estabelecer uma conexão entre jogos de RPG de mesa e o pensamento absurdista, particularmente na vertente camusiana para quem isso importar;
Mostrar como você pode se aproveitar dessa relação consistentemente para melhorar sua interpretação de personagens;
Demonstrar que isso pode trazer benefícios práticos para as demais áreas da sua vida.
No entanto, há alguns requisitos para isso. Eu preciso que você, leitor, tenha alguma familiaridade com RPGs de mesa, o que eu imagino que não seja um problema para muitos leitores da IS – mas, se for, dá uma conferida nesse podcast rápido e interessante da IS falando mais sobre RPGs de mesa! –, e também com o pensamento existencialista de modo geral, com ênfase no absurdismo.
Então eu vou começar falando um pouco sobre o básico do básico de existencialismo, como uma “meta 0”, só pra gente estar no mesmo barco, particularmente dos aspectos que vamos aproveitar dele. Não leve isso como um guia completo, acadêmico, rigoroso, nem nada do tipo. É uma exploração casual e assumidamente superficial do tema, que eu acredito ser possível; afinal, não creio que conversas casuais precisem ser sobre temas desinteressantes na tentativa de demonstrar o mínimo possível de afeta, e apenas mascarado por trás de funções fáticas.
0) O Que É Existencialismo?
Existencialismo, em poucas palavras, deriva seu nome da forma particular como seus pensadores observam o mundo. Nele, a realidade se divide em duas coisas: Existência e Essência. Enquanto muitos sistemas de pensamento colocariam o ser humano como tendo sido criado para uma finalidade, um propósito, que é sua Essência – por exemplo: para a biologia, a manutenção e o aperfeiçoamento da espécie; para a teologia cristã, agradar a Deus; etc. –, o Existencialismo propõe que o ser humano seja algo absolutamente único e singular, no sentido de que sua Existência precede sua Essência, isto é, ele não nasce com um propósito de vida, mas cria ou encontra um.
Isso foi uma mudança de paradigma um pouco radical para a época, embora atualmente o foco em ‘se encontrar’ seja mais proeminente. Lembre que para o pensador clássico padrão, como os famosos gregos, isso seria inimaginável. Afinal, se o humano existe em um cosmo ordenado, ele possui necessariamente uma função prévia a desempenhar. Se a tesoura é criada especificamente pela necessidade de cortar, a árvore é criada para dar frutos e a arte para ser vista ou expressar uma ideia, então o humano também só poderia ter sido criado para desempenhar um papel específico no universo. E, por mais pessoal ou positivo que esse papel seja – por exemplo, a Essência do humano pode ser encontrar prazer e alegria, ou acumular conhecimento e técnica –, ele seria ainda assim inescapável e inelutável. Fugir dele seria viver mal.
O que o Existencialismo nos propõe é o oposto, que a sua Essência só pode ser determinada por você mesmo a qualquer momento, e talvez seja coisas diferentes em momentos diferentes. A célebre frase de Sartre, “o homem é condenado a ser livre”, é como um coringa no baralho. Cada coisa na existência sacou uma carta que descreve sua função, a humanidade sacou o coringa, e agora sua função é encontrar e descobrir suas próprias funções por conta própria, o que pode ser tanto uma benção quanto uma maldição; isso pode te tirar de um enrosco com uma mão ruim, mas também suja sua canastra. Nesse sentido, não existe a ausência de escolha e posicionamento para o ser humano, não há ‘natureza humana’, não há quem culpar além de nós mesmos, a falta de escolha é uma escolha em si; fazer algo traz sentido para a vida e tudo que se faz diz algo sobre si.
É nesse contexto que o pensador Albert Camus nos apresenta, em seu Mito de Sísifo, uma interessante hipótese sobre a vida humana e seu significado. Sísifo é uma figura mitológica grega que foi condenada a empurrar uma pedra pesada ladeira a cima por toda a eternidade – o que é bastante tempo –, pois sempre que ele terminasse o trabalho a pedra rolaria novamente para baixo e ele teria de recomeçar. Isso pode parecer uma existência miserável e sem sentido – e talvez seja mesmo –, mas Camus nos diz que não precisa ser, pois nós podemos criar sentido para as coisas, inclusive nossa própria existência, e nos contentar com ele.
“A própria luta em direção às alturas é suficiente para encher o coração de um homem. Deve-se imaginar Sísifo feliz.”
— CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo, 1942
1) Jogos NÃO Têm Sentido
Isso pode parecer estranho vindo de alguém que trabalha com jogos, mas é verdade, só não do jeito que muitas pessoas interpretariam. Jogos são uma atividade que, por definição, não têm um propósito externo a si, o objetivo de um jogo é meramente perpetrar e perpetuar o próprio jogo em si. O número de pontos e rodadas que o jogador venceu não significam nada fora do jogo, a não ser que os próprios jogadores criem um significado externo para ele. Se dois reis decidem uma questão judicial em uma partida de xadrez, isso é um significado completamente inventado pelos jogadores; o único propósito de se jogar xadrez é… jogar xadrez. E o mesmo serve para qualquer jogo.
Se um esporte como o futebol tem implicações diplomáticas, como “paralisar uma guerra civil”, isso nada tem a ver com o jogo do futebol, em que a rua de cima perde, a rua de baixo ganha, vão todos para casa porque já está tarde e as mães vão brigar, e no dia seguinte tudo recomeça. O mesmo vale para RPGs de mesa: sem dúvida pode haver mil e um motivos pelos quais uma pessoa em particular joga RPG, mas não existe um único propósito sequer para uma pessoa qualquer jogar RPG além de jogar RPG. A interpretação de personagens não é, em si, um meio para chegar ao chefão da masmorra e pilhar tesouros, ela é a sua própria finalidade. O combate também. A exploração do vasto universo que um otário – frequentemente eu – passou a semana toda criando para você também é, assim como o próprio ato em si de criar esse “vasto universo”. Nada disso tem outro sentido em si, mas nós podemos criar nossos próprios significados para os eventos de uma história.
O teórico dos jogos Johann Huizinga, em seu trabalho mais famoso ‘Homo Ludens’, que os jogos são aquilo que torna a humanidade… bem, humana. Ele diz que o conceito de jogar não é apenas fundamental para entender o comportamento humano como é na verdade o fundamento daquilo que se entende por humanidade. Talvez seja uma afirmação exagerada, mas da ótica existencialista é certamente possível compreender de onde ele parte. Se a definição de humano é a capacidade de significar o mundo, criar narrativas para ele, e os jogos são o epítome da aplicabilidade dessa capacidade por não terem significado em si, decorre naturalmente que jogos sejam uma representação fundamental da humanidade humana.
“A cultura surge e se desdobra no e como o jogo.”
— HUIZINGA, Johann. Homo Ludens: O Jogo como Elemento da Cultura, 1938
2) Falhas e Significação
Bem, tudo isso é muito bacana, mas você que chegou até aqui pode estar se perguntando “o que eu faço com isso?” Veja, RPG é uma atividade bastante simples e Intuitiva quando tudo vai bem: eu quero atacar, logo eu ataco; eu quero criar uma bola de fogo, logo eu crio uma bola de fogo; eu quero passar despercebido com uma tocha na mão pelos guardas do palácio e roubar a coroa da rainha, logo… você entendeu. Mas nós humanos, enquanto espécie, gostamos de um pouco de desafio, gostamos de surpresas, por isso consultamos soberanos cósmicos poliédricos chamados dados ou inserimos outras limitações em nossos RPGs.
Por causa disso, às vezes eu quero atacar, mas não consigo; ou eu quero conjurar uma bola de fogo, mas não posso; ou eu quero passar despercebido, mas eu sou um animal e tô segurando uma tocha na minha mão. O ponto é que falhas acontecem. É fácil significar nossos êxitos, nossas vitórias, nossos sucessos, mas não é tão fácil construir sentidos para nossos fracassos, nossas derrotas e nossas falhas. Mas RPG é geralmente um jogo de interpretação de papéis, não apenas de papéis bem-sucedidos, não só interpretação de acertos, então está fadado a incorrer na interpretação de falhas também, e é interessante que você esteja preparado para lidar com isso.
Um ótimo método para lidar com essa situação é o que se chama no ramo da improvisação de ‘Regra da Concordância’, ou mais comumente conhecido apenas como “Sim, e…” Isso é um pouco desafiador, sem dúvida, pois já requer alguma maturidade ser capaz de dizer ‘sim’ para suas falhas, aceitá-las e seguir em frente. Porém, isso na verdade acaba deixando um gosto mais amargo do que o ‘sim, e’ a longo prazo. Quando algo dá errado e você diz apenas ‘sim (ponto final)’ e pivota para outra abordagem, você está encerrando toda uma cadeia de eventos anteriores que pode ter envolvido diversos acertos e abandonando-a. Você mata toda essa sequência de eventos e coloca nela um clímax muitas vezes insatisfatório, em vez de se permitir trabalhá-la para um desfecho mais positivo.
Imagine que seu personagem, um grande arqueiro renomado, extremamente hábil, um belo dia, erra um alvo importante que ele tinha tudo para acertar. A resposta da maioria dos jogadores é bufar e se resignar com a situação, tentando racionalizá-la como uma aberração das regras do jogo. Eles protestam, “certamente meu personagem não faria isso, ele é um mestre na arquearia!”, mas, no final das contas, acatam o resultado e seguem em frente como se nada tivesse acontecido. Essa seria a abordagem “sim (ponto final)” – embora seja quase o “não, mas…” Então como seria a abordagem “sim e…”? O personagem erra o alvo e se frustra. Talvez mais tarde, sozinho, ele reflita sobre o que aquilo significa. Estaria ele ficando velho demais para isso? Estaria a visão dele se deteriorando? E, se estiver, o que isso significa para ele? O fracasso aqui cria uma trama completamente nova que o êxito jamais teria criado. O personagem cresce e se desenvolve com isso. A falha traz dinamismo e mudança para a história, e isso não depende de sistema de regra nenhum.
Isso não significa que o personagem precisa se aposentar depois da falha, mas a falha traz drama para a história, traz tensão, o que a torna mais interessante. Pode ser que depois de algumas sessões o personagem conclua que foi apenas uma paranoia sua, que erros acontecem com todo mundo, mesmo com os melhores, e que ele se reencontre com suas convicções; ou talvez ele peça a bênção da deusa da caça e se torne seu messias em um arco – com o perdão da piada – totalmente novo para ele. Claro, nem todas as falhas são merecedoras de tamanha elaboração, mas algumas são. Algumas delas devem acabar e se perder, outras carecem de acolhimento e desenvolvimento. É uma decisão sua para tomar.
3) Sim… e?
Não é só nos jogos e nos livros que as pessoas crescem a partir de seus erros. Acredite ou não, pessoas reais também podem extrair lições valiosas de suas falhas e crescer. E, como em muitos outros aspectos, a prática no RPG pode conduzir a maior facilidade ao lidar com as situações concretas na vida real. Assumir essa técnica de interpretação de personagens pode contribuir para que você se desenvolva mais facilmente enquanto ser humano. Porque, acredite, dizer ‘sim, e’ para suas falhas na vida real é significativamente mais difícil.
Em muitos sentidos, contudo, é bastante difícil de diferenciar em termos estritamente técnicos a vida de um jogo: enquanto ela perdura, seu objetivo é a sua própria perpetuação; seu significado é construído por nós, enquanto a vivenciamos; e, depois que ela acaba, não tem sentido algum, já que o jogador não mais existe para significá-la. É claro, a vida não é um jogo, mas em alguns sentidos se assemelha a um. Um jogo em que decidimos como enxergar o mundo e o nosso lugar nele, qual papel vamos desempenhar nele, navegando a vida como um mar que podemos interpretar como plácido ou estagnado, como turbulento ou desafiador, pois não há uma destinação singular como geralmente ocorre ao se navegar. Afinal, para deixá-los hoje, nas palavras de alguém que, acredito, dispensa apresentações e já disse isso muito tempo atrás à sua própria maneira:
“Navegar é preciso, viver não é preciso.”