Resumo
Como a artista e desenvolvedora de aventuras Jennell Jaquays me ajudou a melhorar meus jogos de RPG e minha perspectiva sobre a vida, e como ela continua a impactar o cenário de jogos analógicos e digitais, como a franquia de Darksouls, com sua filosofia única de design ‘jaquaysado’ mesmo após sua morte, sendo um símbolo de empoderamento enquanto mulher trans em um mercado desafiador.
Ilustração digital de Jennell Jaquays produzida a partir de fotografia.
Apresentações
Olá, pessoas! Como essa é minha primeira contribuição para esse espaço da IS, creio que cabem algumas apresentações rápidas. Meu nome é Ettore Cagni – sim, eu sei, estranho, pode falar, não se preocupe, não fui eu que escolhi –, letrista e designer de jogos, autor do Sherlock Holmes RPG. Minha participação na IS já está pendente há quase um ano porque a vida… ah, a vida! Eu atuo com RPGs de mesa e jogos de tabuleiro profissionalmente através da Trova RPG há cerca de uma década – que é uma parte considerável da minha existência parando para pensar agora –, onde estou atualmente conduzindo uma campanha com metas beneficentes para a ONG Arte &Vida, para quem puder ajudar. O pessoal aqui da IS foi acolhedor o bastante para topar receber algumas divagações minhas sobre jogos, e paciente o bastante para esperar algumas turbulências passarem antes que eu pudesse me comprometer inteiramente. São pessoas de uma generosidade rara. Mas não é pra isso que você está aqui, então vamos direto ao que te interessa!
Para esse artigo de estreia, tomei inspiração em uma excelente matéria recente de minha amiga Carol Bernardino na New Order Magazine – revista mensal sobre assuntos gerais do universo do RPG da New Order Editora. Ela abordou a inclusão LGBTQIAPN+ em mesas de RPG no Janeiro Lilás – mês dedicado à visibilidade transexual –, enquanto em outra matéria fez um panorama geral sobre a vida, a obra e as conquistas de Jennell Jaquays. Um elo muito triste porém significativo entre esses dois tópicos é o fato de que Jennell Jaquays, uma das pessoas mais importantes para a história do RPG e dos videogames no mundo, e que também era uma mulher trans, faleceu no dia 10 justamente do mês de janeiro deste ano, em Dallas (Texas), aos 67 anos de idade, deixando esposa e filhos.
Quem É Jennell Jaquays?
Agora, você talvez tenha curiosidade sobre o que tornou Jennell uma figura tão relevante para o universo dos jogos. Certo que ela era uma ilustradora de talento invejável, porém não se trata de suas contribuições visuais propriamente ditas. Trata-se, sim, de uma determinada forma de estruturar e contar histórias, uma maneira de comunicar jornadas através de como são projetados espaços em uma narrativa. Essa terminologia de ‘Jaquaysar Masmorras’ – originalmente, ‘Jaquaysing Dungeons’ – foi popularizada por Justin Alexander, responsável pelo blog e canal de RPG ‘The Alexandrian’.
Infelizmente, contudo, não vejo esse assunto fantástico sendo abordado com tanta frequência para o público brasileiro, de modo que decidi contribuir com meu quinhão. Apesar dessa ideia de ‘Jaquaysar’ ser mais comumente associada às famigeradas ‘masmorras’, onde aventureiros destemidos se enfiam para matar monstros e pilhar tesouros em sessões de RPG de mesa, em verdade essa metodologia é muito mais abrangente do que isso. O método de Jennell é uma ferramenta para contar histórias mais envolventes e imersivas, tendo sido adotado tanto em aventuras de Dungeons & Dragons quanto em franquias de videogame como Halo e Quake – nas quais Jennell trabalhou diretamente –, sendo um dos principais segredos por trás do sucesso de franquias como a dos jogos ‘Souls’ (expandida) – Demonsouls, Darksouls (1, 2 e 3), Bloodborne, Sekiro e Elden Ring.
Qualquer jogador da série Souls pode afirmar que a parte mais interessante do jogo não são necessariamente as mecânicas, como o combate e a progressão das habilidades, pois elas são bem simples dentro do padrão de RPGs e jogos de ação. O que há de mais interessante nesses jogos é a forma como o mundo é criado e estruturado, as diversas maneiras pelas quais o jogador pode explorá-lo, os modos de se descobri-lo, os meios pelos quais se pode vivenciá-lo. Isso se dá por uma aplicação rigorosa e consciente da metodologia de Jaquays. Então, para transmitir essa metodologia, vou iniciar pela via visual, a estruturação de mapas de masmorras, que é o mais comum, e então expandir para outros campos de narrativa em geral.
Mapas Jaquaysados
O método Jaquays consiste, fundamentalmente, na criação de espaços não lineares através de diversos pontos de ingresso bastante distintos e na inserção de vários anéis na estrutura do espaço. Para exemplificar, imagine a seguinte aventura simples em uma masmorra: o acesso a ela se dá por um enigma na sala central da mansão adequadamente macabra de um nobre local, que dá lugar a todo um complexo cavernoso sob a sua cidade. O primeiro trecho desse complexo é constituído por alojamentos secretos para os colegas cultistas do nobre; em seguida, há uma série de cativeiros para vítimas de sacrifício em rituais nefastos; por fim, isso nos leva a um grande salão ritualístico com uma estátua enorme de uma entidade profana e um grande buraco que conduz diretamente ao seu reino no submundo. Claro, tudo permeado pelas tradicionais armadilhas — afinal, o ladino precisa ter algo para se manter entretido.
Essa é uma aventura interessante, sem dúvida! Ela funciona. Os personagens entram na mansão, desvendam o enigma, descem até a caverna, confrontam alguns cultistas em seus aposentos, libertam reféns e então interrompem as atividades principais do culto maligno em uma batalha clímax. Vários aspectos dela podem trazer diversão aos seus jogadores… mas nenhum deles será a navegação pelo espaço. Provavelmente, ao navegar por essa aventura, seus jogadores estarão continuamente falando “e a gente segue em frente” entre alguns combates e eventos menores. Isso, em si, não é divertido. Mas poderia ser. O segredo é trazer escolhas interessantes para a navegação.
E se, em vez desse trajeto linear, eles pudessem navegar a aventura de modo mais aberto? E se, na mansão, houvesse mais de um ponto de acesso ao complexo cavernoso, um que leva aos alojamentos dos cultistas, outro que conduz diretamente para onde as vítimas estão presas? Isso imediatamente faria com que o local de entrada na mansão alterasse o percurso dos personagens nas cavernas. E se o poço ‘sem fundo’ na sala dos rituais na verdade tivesse fundo, e os sons ouvidos emanando de lá pelos cultistas não fossem sussurros infernais mas, sim, o eco distante de um rio subterrâneo bem lá embaixo, por onde os personagens também pudessem escalar e invadir o complexo?
E se um dos quartos dos cultistas tiver um acesso para a área dos reféns que não passe por quaisquer medidas de segurança que existam no complexo? E se, em vez do complexo ser essencialmente uma linha reta com algumas ramificações para os alojamentos, ele fosse um forcado, com uma tripartição central, cada uma conduzindo a uma das áreas principais? Nesse caso, o local de entrada talvez afetasse as escolhas que os jogadores teriam que fazer. Talvez, ao entrar pelos quartos dos cultistas, os personagens tivessem então que escolher se teriam como foco: 1) salvar os reféns, ou 2) impedir o ritual já em andamento que pode trazer forças tenebrosas para o mundo. Talvez, ao ingressar pelo rio subterrâneo, os personagens nem tenham ideia de que o culto tem alguma relação com a nobreza de uma cidade, de modo que isso se torne uma revelação para eles descobrirem como contornar posteriormente.
Consegue ver como simplesmente trazer novos pontos de acesso e tornar a navegação não linear já torna as histórias muito mais envolventes? Afinal, são as escolhas dos jogadores que movem o enredo para frente e impulsionam as descobertas. Mas, OK, apesar disso em si até ser um conselho útil, também é bastante simples, não explica a relevância absurda de Jennell para a trajetória dos jogos de tabuleiro e digitais. Isso é porque estamos falando nos termos mais simples e concretos da aplicação da metodologia Jaquays. Agora, pense que um quarto não precisa ser literalmente um quarto, vamos abstrair a masmorra. Afinal, um quarto em uma masmorra é meramente um momento interessante entre duas escolhas de navegação.
Narrativas Jaquaysadas
Você escolheu o corredor da esquerda em vez do corredor da direita, o que o trouxe até o quarto A, em vez do quarto B; agora você tem mais dois corredores, um de cada lado, levando aos quartos C e D, e ainda pode escolher voltar e investigar o quarto B que ficou para trás. O mesmo pode ser feito com a navegação dos jogadores pela própria narrativa em si. Os eventos da sua narrativa podem ter múltiplos pontos de ingresso, e é interessante que eles tenham anéis conectando os vários arcos. Digamos que você queira que a sua campanha aborde os seguintes elementos: um necromante tentando criar amálgamas de figuras históricas significativas; uma incursão de seres além da compreensão vindos de outra dimensão; uma guerra entre duas nações vizinhas; e a cereja do bolo é uma rebelião de gigantes querendo tomar conta do continente agora que a população de seus adversários dracônicos foi reduzida substancialmente pelo incentivo à sua caça. Você junta tudo isso na sua cabeça da forma que lhe parece mais conveniente e… BUM! Temos uma campanha! Ou será que não?
Dificilmente poderíamos dizer que essa campanha está realmente terminada. Afinal, como uma coisa leva à outra? E se os jogadores não pegarem as iscas que você jogar? Esses pontos do enredo não são diferentes demais para conciliar? Não é coisa demais? Bem, certamente é bastante coisa, mas não é algo tão complexo se você deixar vários ganchos para o enredo e talvez alguns pontos de tangência entre esses arcos. Por exemplo, você pode inserir um antagonismo marcado entre os reinos com algumas missões paralelas para lidar com pequenos conflitos localizados, também pode incluir alguns ataques de gigantes em vilas distantes, bem como artefatos misteriosos com inscrições incompreensíveis espalhados por aí, e, quem sabe, alguns relatos de tumbas de pessoas importantes terem sido perturbadas recentemente.
Isso são múltiplos pontos de acesso distintos ao enredo, é muito mais seguro e confortável do que tentar empurrar o mesmo ponto de acesso goela abaixo dos jogadores, porque pode ser que eles não se interessem por um ou mais dos trechos do enredo a princípio. Às vezes pode ser pelo próprio nível dos personagens que os jogadores se sintam despreparados para encarar um determinado gancho, pois eles não sabem que você tem formas de lidar com essa diferença de nível. Enfrentar um necromante poderoso ou lidar com uma guerra podem parecer objetivos inatingíveis para pessoas diferentes em momentos diferentes.
Além disso, você pode criar anéis redundantes entre esses diferentes arcos. Talvez a rebelião dos gigantes seja incentivada pelo necromante, que também pode ser conselheiro de um dos reis, e também quem colocou os reinos em conflito, para que precisassem de ajuda externa para lidar com os gigantes uma vez que não possam mais contar com uma aliança entre si. Com isso, os reinos recorreriam ao necromante e aceitariam seu plano temeroso de ressuscitar dragões sob seu comando para lidar com os gigantes. Talvez, sem que ele saiba, o próprio necromante esteja sendo manipulado pelos seres extradimensionais, pois eles precisam de um elevado grau de entropia, um grande caos no plano material, para poderem consolidar sua incursão. Esses pontos de conexão entre os arcos possibilitam que você – ou, melhor dizendo, seus jogadores – escolha(m) interromper um dos arcos e prosseguir em outro quando lhes parecer mais conveniente. Isso gera uma experiência narrativa muito mais pessoal para eles sem demandar tanto esforço na personalização da história.
Conclusões
Como um último apontamento, é importante notar que o uso dessa navegação não linear exige que os diferentes locais ou arcos narrativos permeados por ela sejam claramente identificáveis em geral – claro, vez ou outra você pode subverter isso com alguma intencionalidade escusa, mas como via de regra é bom que a navegação seja clara e inequívoca. Um ótimo exemplo disso é a série Souls (mapa exemplar da wiki reproduzido abaixo): embora haja múltiplos pontos de acesso e interconexões entre as diferentes áreas do mundo explorável, cada uma é perfeitamente discernível visualmente, ou então possui grandes marcos diegéticos úteis para a orientação dentro de jogo, como uma gigantesca árvore dourada brilhante. Esse é um exemplo claro de Jaquaysação que não se restringe à escala micro, a pequenas masmorras e zonas de exploração, em vez disso abrangendo todo o universo do jogo e afetando diretamente como a história inteira é experimentada pelos jogadores.
Jennell é e continuará sendo um símbolo inegável dos desafios, lutas e incertezas – tanto internas quanto externas – vivenciadas pela população LGBTQIAPN+ em toda e qualquer área de atuação. Mas ela também será sempre um símbolo de esperança inabalável e da superação cotidiana dessa opressão. Ela é o lembrete a cada pessoa preconceituosa em sua área para abrir mão de suas convicções retrógradas e observar o potencial de cada pessoa pelo que ela é: uma pessoa. No caso de Jennell, uma pessoa brilhante, uma pessoa extremamente competente e capacitada, e também uma pessoa trans com muito orgulho. Uma pessoa que encontrou obstáculos e barreiras tanto antes quanto depois de sua transição, uma pessoa que nem sempre soube como lidar com esses entraves da forma mais saudável para si e para a comunidade, mas que reconheceu esses problemas e aprendeu com eles, cresceu com eles, e fez uso disso para se libertar das amarras impostas por um mercado pouco receptivo, aliás, por uma sociedade pouco acolhedora.
Não é simples. É confuso, é complexo, é trabalhoso e é um processo contínuo. Não é linear e direto como gostaríamos, mas é real, e é melhor por conta disso. Não é difícil entender, eu acho, como, entre tantas pessoas envolvidas com esse cosmo cultural dos jogos, Jennell foi aquela que conseguiu visualizar essa forma diferente de contar histórias, como ela pode compreender melhor do que outras pessoas que as narrativas, assim, como a vida, não são lineares, não têm um começo, um meio e um fim muito claros.
Às vezes você cai de paraquedas no meio de uma masmorra, ou até surge de cara com o vilão. E tudo bem, faz parte, acontece. Não é sobre a situação em que nos encontramos mas, sim, sobre como você lida com ela. Às vezes, temos que fazer escolhas e nenhum caminho parece melhor do que o outro, mas você precisa escolher mesmo assim, e é isso que torna a vida um pouco mais interessante, mesmo que nem sempre fácil. Por vezes iremos pegar o caminho mais longo e ter que se arrastar sobre cacos de vidro, só pra no final descobrir que o outro caminho era muito mais fácil e rápido, ou pior, temos que andar em círculos enquanto mantemos a esperança de que vai dar tudo certo no final. Isso é a vida, a parte mais desgraçada e sadisticamente interessante dela, e também pode ser a melhor parte dos seus jogos e das suas histórias.
Ter contato com o trabalho dessa pessoa fantástica que foi Jennell Jaquays foi algo muito positivo, me ajudou a entender melhor a mim mesmo, especialmente nesse momento, mesmo que tecnicamente ela falasse apenas sobre jogos, espero que os insights dela também sejam de algum valor para você. De todo modo, é aqui que nos despedimos nesta masmorra. Não sei por onde você entrou nela, mas fico feliz que esteja aqui, e espero que também tenha aproveitado esse tempo juntos. Mas, como você bem sabe agora, muitos desses corredores dão voltas e voltas, e nos trarão de volta para cá, juntos novamente, no próximo artigo, para matar mais um dragão e pilhar mais um tesouro! Até a próxima!
Po, não conhecia a Jaquays. Mergulhei ano passado no mundo do RPG e ultimamente tenho buscado conteúdo teórico sobre games (querendo mestrar num futuro próximo). O texto caiu como uma luva. Inclusive, se tiverem mais indicações teóricas de game design (especialmente TTRPG) tou de olho. Uma outra mulher que tenho considerado bem importante nessa jornada é a Deborah Ann Woll, mestra com paixão e tem ótimas dicas.
Este Sistema gerado pela Jennell Jaquays é extremamente interessante e complexo. Brilhante, eu diria, por contemplar todas as possibilidades que podem ser abertas dentro de qualquer tipo de jogo.