Manuela postou em seu status uma foto de corpo inteiro. Em poucos minutos, subiram comentários dos colegas de escola. Gorda e baleia eram os mais frequentes. Enquanto lia com repúdio aquelas palavras, a adolescente percebeu um par de olhinhos vermelhos no fundo da página. Uma criatura saltou da tela e a atacou. Ouvindo os gritos no quarto, os pais de Manuela correram para socorrê-la. Encontraram a jovem chorando ensanguentada, com mordidas e arranhões nos braços e no rosto. O caso repercutiu na imprensa e chamou a atenção para a existência de uma nova forma de vida.
Encalacrado entre os confusos bits da rede mundial de computadores, um animal selvagem se adaptou e evoluiu. Silencioso no começo, ganhou força alimentando-se da energia negativa abundante naquele ecossistema. Espinhos em suas costas e garras pontiagudas garantiram aderência à fibra óptica.
Peludo de olhos arregalados, escarafuncha servidores, cavuca placas de vídeo e embaralha cabos roçando sua barriga felpuda. Como estratégia de sobrevivência, aprendeu a dar deslike em postagens, curtir comentários maldosos e compartilhar todo tipo de porcaria política. Seu focinho duro, com frequência, raspa antenas de wifi causando lentidão e queda.
Big techs monitoram há anos seus passinhos rápidos. De cara, enxergaram o potencial lucrativo da criatura. O lixo cibernético espalhado gerou engajamento, o caos protagonizado pelas silenciosas patinhas, agitaram a rede. Respondendo a instintos primitivos e irracionais, o animal digital abarrotou os cofres dessas empresas com milhões de dólares. Bilionárias, elas passaram a alimentá-lo cada vez mais, celebrando sua existência.
No entanto, o odor fétido emanado por sua pelagem naturalmente oleosa, incomodou algumas pessoas. Tóxico, o cheiro afetava o comportamento dos navegantes. Ansiedade, depressão e violência configuram entre os efeitos mais nocivos. Crianças e adolescentes ficaram expostos sem qualquer aviso. Grupos de pais preocupados organizaram-se para exigir medidas por parte das corporações.
Divergindo quanto à solução, iam de ideias extremas à moderadas. Alguns falavam em dedetização, outros em um controle rigoroso, considerando o animal como uma nova espécie a ser preservada.
Políticos e autoridades compraram a briga pelo controle do bicho. Conforme crescia, sua influência tóxica aumentava sobre um eleitorado impressionável muito perto do período eleitoral. Era necessário rigor! A criatura tem direito à vida, aludiram, mas não deve existir sem regras.
Atentas ao debate público, as big techs se reuniram. Sua mina de ouro devia ser protegida. Elas sabiam tudo sobre o animal, onde se escondia, suas fragilidades. Como qualquer outro ser vivo, ele sentia medo, poderia ser capturado, domesticado. Seria o fim da mamata. Estava na hora de um upgrade! Dispondo de recursos quase ilimitados, seus melhores cientistas desenvolveram uma ração especial. Um estimulante psicoativo à base de cafeína e folha de coca rico em gordura, quase como nossos refrigerantes.
Tunado, eletrizado e sem controle, o animal corroeu as discussões, defecou em comentários, urinou em linhas de transmissão, arranhou imagens. Solto desbaratado, saltava por circuitos e antenas de transmissão marcando território com seu cheiro peculiar. Inebriados, internautas se dividiram, se agrediram e se isolaram. Famílias foram separadas, amigos tornaram-se inimigos. Divergências, polêmicas e ofensas ganharam destaque enroscadas em sua cauda.
Secreções escorreram das narinas do bicho e grudaram em toda parte. Em contato com a poeira, formou uma massa pegajosa debaixo dos botões dos teclados. Seu estado alterado, dava sinais visíveis e preocupantes. O ataque à Manuela fora o estopim de uma série de eventos negligenciados. Uma verdadeira tragédia anunciada.
Outros casos foram registrados em cidades distantes pelo Brasil numa velocidade surreal. Um garotinho de Vitória da Conquista foi visto apático na sala de aula com uma criaturinha espinhosa no ombro sugando seu pescoço. Uma dona de casa de Londrina espantou a vassouradas um estranho monstrinho que tentava roubar seu smartphone no mesmo dia. Pesquisadores da fauna cibernética acreditam se tratar de uma infestação. A vida, conforme aprendemos em Jurassic Park, teria encontrado um jeito.
A despeito do pandemônio generalizado, juristas discutem quem deve ser responsabilizado pelos episódios, uma empresa de brinquedos lança uma pelúcia inspirada no animal e fatura alto, a revista Time elege-o como a pessoa do ano. Em entrevista ao jornal das oito, a tenente da polícia militar Maria Gatilho alerta: “Se você ver um par de olhinhos vermelhos no pano de fundo de qualquer página da internet ou rede social, abandone seu dispositivo imediatamente!”