O milagre de Tiana, a travesti de 92 anos, e o mundo que os (adoecidos) conservadores não conseguem destruir
"O mundo que os conservadores desejam destruir é o mundo gay e lésbico, o mundo trans e o mundo feminista. Eles já são poderosos demais, não têm chance de destruí-los — e sabem disso", Judith Butler.
Judith Butler, filósofa norte-americana contemporânea, é uma das principais vozes do pensamento feminista e queer. Sua obra,que inclui Problemas de gênero (1990) e Caminhos divergentes: judaicidade e crítica do sionismo (2017), desafia as fronteiras entre corpo, norma e poder, defendendo que o gênero é uma construção social reiterada performativamente e que as vidas dissidentes expõem os limites do que uma sociedade reconhece como humano. Em sua passagem pelo Brasil, durante o seminário Os fins da democracia (São Paulo, 2017), Butler foi hostilizada e quase agredida em um aeroporto. Diante do ataque, respondeu com serenidade: o ódio dos conservadores nasce do medo. E medo do que não podem mais controlar, medo da liberdade alheia.
O mundo que os conservadores desejam destruir é o mundo gay e lésbico, o mundo trans e o mundo feminista. Eles já são poderosos demais, não têm chance de destruí-los — e sabem disso. Sabem que não apenas são muito fortes, mas estão se tornando cada vez mais poderosos, mais aceitos e mais reconhecidos. E quanto mais percebem isso, mais raiva sentem. Existem duas formas de abordar esse ressentimento: uma teológica e outra política — ainda que, no fim, ambas se encontrem.
O problema teológico é que, para quem acredita na Bíblia como lei literal, Deus criou o homem e a mulher desde o nascimento, distintos, e concedeu ao homem domínio sobre a mulher. Essa crença sustenta papéis sociais fixos: o homem como provedor, a mulher como cuidadora, o casamento e a reprodução dentro da heterossexualidade como ordem natural e divina. Assim, quando mulheres decidem ter filhos sozinhas, quando gays e lésbicas se casam, quando pessoas trans afirmam seu gênero, quando alguém usa tecnologias reprodutivas ou decide não ter filhos, tudo isso é visto como afronta à vontade divina.
Essas liberdades — conquistadas pelos movimentos feministas e LGBTQIA+ — abalam a ideia tradicional de família, a dominação masculina e a crença de que o casamento e a reprodução heterossexuais são determinados por Deus. Para aqueles que se beneficiaram dessa hegemonia, é difícil aceitar que outros possam desejar modos diferentes de viver: casais do mesmo sexo, uniões sem casamento formal, mulheres que escolhem ter filhos sozinhas, profissionais do sexo que reivindicam direitos e aposentadoria. Todas essas lutas, nascidas de uma perspectiva feminista e queer, questionam a estrutura heteronormativa e patriarcal.
Mas nem todos os heterossexuais pensam dessa forma. Muitos aceitam a homossexualidade, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, acolhem pessoas trans, intersexo e reconhecem o direito de todos à liberdade reprodutiva. A diferença está entre aqueles que querem impor sua forma de vida íntima como modelo universal e aqueles que aceitam a diversidade de gênero e sexualidade no mundo.
O mundo que os conservadores desejam destruir — o mundo gay, lésbico, trans e feminista — é poderoso demais para ser aniquilado. E eles sabem disso. Não só é forte, mas cresce a cada dia, tornando-se mais aceito, mais visível e mais amado. Quanto mais tentam apagá-lo, mais ele floresce. O que vemos nesse conservadorismo sexual contemporâneo é uma política reacionária: um esforço para nos arrastar de volta a um passado que não voltará.
Não devemos temer que todos os avanços sejam revertidos. Eles estão tentando, sim, mas não vencerão. Porque o nosso lado é o da aceitação, da compreensão e do reconhecimento. As pessoas querem viver com liberdade e alegria — não com vergonha, nem sob censura. A liberdade está do nosso lado, e é por isso que, no fim, venceremos.
(Butler, 2017)
A afirmação de Judith Butler parte do reconhecimento de que as disputas políticas contemporâneas não se limitam à esfera das leis ou das instituições, mas atingem o terreno do corpo, da sexualidade e da reprodução. O “mundo que os conservadores desejam destruir”, que é o mundo gay, lésbico, trans e feminista, é, em sua formulação, o espaço simbólico e material onde se produzem novas formas de vida, novos modos de parentesco e novas alianças que desafiam as estruturas patriarcais e heteronormativas que sustentaram a política ocidental moderna. Trata-se, portanto, de uma disputa ontológica, e não apenas moral: o que está em jogo é o direito de existir fora do modelo de humanidade definido pelo homem branco, heterossexual e cristão.
Butler observa que o ressentimento conservador é duplamente motivado teológica e politicamente. No plano teológico, a crença na literalidade da Bíblia funciona como um dispositivo normativo que naturaliza as hierarquias de gênero e poder, traduzindo a desigualdade em mandamento divino. Essa estrutura religiosa, que sustenta a diferença sexual como destino, é o que Butler chamaria, em Problemas de gênero (1990), de “matriz heterossexual da inteligibilidade”: o sistema simbólico que define quem pode ser reconhecido como sujeito legítimo, quem pode desejar e de que forma o desejo pode ser expresso. Ao afirmar que Deus criou o homem e a mulher distintos e complementares, essa matriz converte a contingência histórica em necessidade ontológica.
No plano político, essa teologia da diferença sexual se transforma em política do medo. O crescimento da visibilidade trans, gay e feminista ameaça a estabilidade de uma ordem fundada na dominação masculina e na reprodução da família nuclear. Assim, o conservadorismo sexual contemporâneo não é apenas resistência cultural, mas uma reação à perda de poder simbólico. A raiva de que fala Butler é o sintoma dessa perda: o retorno do recalcado político de uma masculinidade que já não se reconhece como centro. Em Corpos em aliança e a política das ruas (2015), Butler argumenta que os corpos reunidos publicamente em torno de causas feministas e LGBTQIA+ não apenas reivindicam direitos, mas performam novas formas de coabitação, encenando, no espaço público, o que antes era relegado à marginalidade.
Nesse sentido, o discurso conservador que tenta restaurar o “mundo de antes” revela sua impossibilidade: o retorno ao passado é uma fantasia, uma forma melancólica de negação da mudança histórica. Butler aponta que o que se vê hoje é uma tentativa de **restaurar uma economia simbólica perdida**, em que o homem detinha o monopólio do sentido, da lei e da fala. Ao se confrontar com o florescimento de vidas dissidentes — gays que se casam, mulheres que recusam a maternidade, pessoas trans que afirmam o gênero próprio — o conservadorismo reage com violência porque reconhece, ainda que inconscientemente, que perdeu a centralidade ontológica.
A força do argumento de Butler está em inverter a posição da vulnerabilidade: aquilo que o discurso reacionário define como “ameaça à ordem” é, na verdade, a expressão da potência da vida. Em *Vida Precária* (2004), ela afirma que a precariedade compartilhada é o fundamento ético de uma política democrática — “a condição pela qual reconhecemos que não há vida que não dependa das outras vidas para se manter”. Ao insistir que “o nosso lado é o da aceitação, da compreensão e do reconhecimento”, Butler desloca o eixo da política da obediência para o da coabitação: o que importa não é restaurar o que foi, mas **sustentar a convivência entre o que é e o que ainda pode vir a ser**.
Por fim, o diagnóstico de Butler sobre a **teologia conservadora** pode ser lido em diálogo com a crítica de Foucault à biopolítica: o poder contemporâneo se exerce não apenas sobre os corpos, mas sobre os modos de viver. Quando Butler afirma que “quanto mais tentam apagá-lo, mais ele floresce”, ela descreve a reversibilidade do poder: quanto mais o Estado e a religião tentam controlar a vida, mais evidente se torna a impossibilidade desse controle. Assim, o “mundo que os conservadores desejam destruir” é também o mundo que, ao resistir, redefine o próprio conceito de política — não mais como exercício da soberania, mas como **afirmação do viver em comum.
Se Butler identifica o ressentimento conservador como reação à perda simbólica do privilégio heteronormativo, Édouard Louis aprofunda essa análise ao mostrar que tal ressentimento está também enraizado nas estruturas materiais da desigualdade. Em obras como Quem matou meu pai (2018) e Luta e metamorfose de uma mulher (2021), Louis revela como o sofrimento de classe é frequentemente deslocado para o ódio identitário: o homem branco, precarizado e humilhado, converte sua dor social em fúria contra minorias sexuais e raciais. Trata-se, como observa, de uma política do ressentimento que mascara a verdadeira origem da exclusão — o abandono do Estado e a violência neoliberal que precariza corpos e vidas. Nesse ponto, Butler e Louis se encontram: ambos desvelam como a moral conservadora se apoia em uma estrutura econômica que necessita de bodes expiatórios para preservar a fantasia da ordem.
No Brasil, essa tensão entre avanço simbólico e resistência reacionária se materializa no campo das políticas públicas para a população LGBTI+. Apesar de o país ainda liderar os índices globais de assassinatos contra pessoas trans, há conquistas institucionais que expressam o florescimento político que Butler descreve. A criação do Conselho Nacional LGBTI+, a institucionalização da Política Nacional de Saúde Integral LGBT, a decisão do STF que criminaliza a homofobia e a transfobia (2019) e a possibilidade de retificação de nome e gênero sem judicialização são marcos de uma transformação estrutural na presença do Estado. Essas políticas, contudo, não são apenas respostas administrativas: são expressões do que Butler chamaria de “performatividade política da vida”, o gesto pelo qual a existência antes marginalizada torna-se fundamento de novos direitos.
É nesse entrelaçamento entre a precariedade e o florescimento que se encontra a força do presente histórico. Se, como afirma Édouard Louis, “a vergonha é o primeiro instrumento da dominação”, a visibilidade e a permanência de vidas como a de Tiana, travesti negra de 92 anos, encarnam o avesso desse mecanismo — uma ética da sobrevivência que é também política de resistência. O Brasil, ao mesmo tempo cemitério e berço de corpos dissidentes, condensa o paradoxo que Butler e Louis diagnosticam: a violência que tenta silenciar é a mesma que revela a potência de um mundo em expansão. A cada tentativa de apagamento, uma nova forma de vida se ergue; a cada corpo marginalizado, um novo modo de dizer “nós existimos” se inscreve na cena pública.
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