Pipoca🍿na manteiga #20 O Corpo que Não Era Meu
Corpo, identidade e estranhamento em “Pobres Criaturas”, na ficção de Clarice Lispector e na experiência Trans.
Há filmes que não assistimos apenas com os olhos, mas com a pele inteira. “Pobres Criaturas”, de Yorgos Lanthimos, é um desses filmes que nos desorganizam. Não apenas pela excentricidade estética ou pelo humor desconcertante, mas por algo mais íntimo e difícil de nomear. O estranhamento que atravessa o corpo de Bella Baxter se parece com aquele instante em que percebemos que algo em nós não acompanha o mundo lá fora. O corpo existe, mas não coincide. A identidade pulsa, mas não se acomoda. E tudo isso faz da experiência de assistir ao filme uma espécie de espelho opaco que devolve perguntas mais do que respostas.
Esse tipo de deslocamento não é novidade na literatura. Clarice Lispector sabia muito bem o que significa habitar um corpo que por vezes parece estrangeiro. Ela escrevia como quem atravessa membranas, como quem tenta tocar o centro incandescente de uma verdade que escapa a toda forma. Em Clarice, o corpo é sempre movimento, sempre risco, sempre pergunta. Talvez seja esse mesmo tipo de vibração que vemos em Bella, que anda pelo mundo como quem acaba de nascer e, ao mesmo tempo, como quem precisa reinventar sua própria gramática de ser.
Judith Butler também insiste que o corpo nunca é dado. É construído, reiterado, performado, tensionado, contestado. É história que se escreve no choque com outras histórias. Paul B. Preciado leva isso ao limite ao afirmar que o corpo contemporâneo é um campo de disputa tecnopolítica. Nada é natural naquilo que chamamos de identidade. Há sempre enquadramentos, normas, expectativas e, sobretudo, limites impostos por discursos que tentam fixar o que deveria ser fluxo. Bella encarna essa luta de forma literal e simbólica. Ela é criada, moldada, educada, vigiada e, mesmo assim, insiste em nascer de novo, de novo e de novo.
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