IS #1 O amor que buscamos nas palavras que calamos: A escuta clínica de uma paciente que sobreviveu à Auschwitz.
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Há algum tempo eu estava pensando em escrever um livro sobre psicanálise, mas sempre me julguei incapaz de fazer isso (síndrome do impostor (e quem não se sente assim às vezes?), diz meu analista). O que eu falaria? O que eu diria? Que tema seria importante? E eis que ao olhar para esse espaço aqui no Substack, em que é possível estabelecer uma conexão próxima com você, que lê o trabalho aqui da IS, eu tive um insight: e se eu contasse, de forma comentada, casos clínicos que eu já atendi e que estão encerrados?
Os casos clínicos contados aqui são de pacientes que ou já encerram o processo terapêutico ou faleceram, como no presente caso. Nomes serão omitidos para preservar a identidade das e dos pacientes. Vale o aviso dos cinemas: qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência… do seu inconsciente. E em casos que o relato fizer sentido para você, procure um psicoterapeuta 🙂
O sentido de um sonho para uma vida inteira
A escuta clínica de uma paciente que sobreviveu à Auschwitz Parte 1
“Lembro que estava nevando muito naquele mês e o trem havia chegado e tinha muito arame farpado. Meu pai me empurrava do trem e eu caía… Eu não queria ficar sozinha, lembro que esse pensamento estava em mim… E tinha aquela minha amiga que eu amava também, que estava no trem. E eu nunca consegui dar a minha mão para meu pai e nem dizer o quanto eu gostava da minha amiga. Eu tenho esse sonho há anos, doutor”. Assim começou a análise mais longa que tive em consultório e com a paciente mais longeva. Quando ela começou a fazer psicoterapia comigo, no caso psicanálise, estava com 90 anos.
“Eu vim aqui para morrer”, disse ela em um tom sarcástico. Ao que respondi: “Errou de profissional. Não sou coveiro e nem matador de aluguel, então não posso ajudá-la”, respondi na mesma altura e com imaturidade profissional que eu tinha na época. “Gostei de você, não me olha como um velha”. Hoje eu me questiono se um simples: “por que quer morrer"? seria a melhor “resposta”.
Durante quase um ano de tratamento eu sabia que havia muitos lapsos na história dela e que faltavam inúmeras informações. Ela nunca se contradizia, mas também era vaga em alguns fatos como o próprio nascimento e sobre os seus pais. Ou seja, para não mentir na própria terapia e revelar que havia fugido ilegalmente da Alemanha em 1945, ela preferiu omitir toda a sua vida antes de chegar ao Brasil. O motivo? Medo.
Nosso laço terapêutico, a chamada transferência, ficou mais forte com o tempo. Eu entendia que de algum modo ela escondia informações. “Você nunca fala sobre como era viver com seus pais e nem onde vivia antes dos treze anos de idade”, afirmava eu. “Isso importa, eu sei. Mas ainda preciso saber se você é um bom profissional”, dizia ela após quase um ano de tratamento. Até que, em uma sessão, o mesmo sonho havia retornado.
“Eu só queria dar a mão para o meu pai. Que a neve daquele mês parasse. E ir embora com ele e minha amiga”
E naquele instante eu me dei conta de três coisas: que eu já havia lido algo parecido com o que ela relatava no doutorado sobre a autora judia alemã Hannah Arendt; que no sonho havia neve durante um mês, ou seja, não era no Brasil e que estávamos ali falando de um édipo: o pai, e amiga-mãe e ela, a filha. Eu não sabia exatamente como, mas tudo estava relacionado. Decidi perguntar para ela por etapas: “quando você me procurou para fazer análise, disse que meus estudos em direitos humanos eram importantes para uma boa análise. E quando eu lhe perguntei você falou que era por ser idosa. Era uma meia verdade, correto?”. Ela me olhou e disse:
“Sim, era uma meia verdade. Eu precisava ter certeza de que você de algum modo se importava com a vida… Com a vida da comunidade judaica… Dos judeus… ENTENDE?
Lembro que eu quase parei de respirar… como agora quando escrevo esse relato tantos anos depois… Muitos colegas de profissão diriam que eu estou errado ao afirmar que a análise da paciente só começou naquele momento. Mas eu realmente não me importo com essa opinião. Eu sinto que foi naquele exato momento que a relação psicanalítica de fato se estabeleceu, que a transferência se estabeleceu em completude.
Para Freud, o sonho constitui "uma realização (disfarçada) de um desejo (reprimido)". Possui um conteúdo manifesto, que é a experiência consciente durante o sono, e ainda um conteúdo latente, considerado inconsciente. Lacan acreditava que os sonhos eram uma forma de linguagem simbólica, assim como as palavras. Ele via os sonhos como um discurso do inconsciente, cheio de metáforas e significados ocultos.
E foi a partir do sonho dela que (re)começamos a sua análise. E como eu já desconfiava, o sonho era muito mais uma rememoração do que aconteceu em 1943: o pai havia conseguido a fuga dela de Auschwitz, mas não a de sua amiga para longe daquele inferno criado por humanos. Naquela sessão, que continua carregada de emoção em minha memória, lembro que imediatamente pensei em um caso que o psicanalista Jacques Lacan atendeu em seu consultório.
Suzanne Hommel nasceu na Alemanha em 1938 e viveu todo o absurdo e horror da segunda guerra. Absurdo e horror no sentido pleno de cada termos pelo que o nazismo foi capaz de fazer: o extermínio burocratizado de milhões de pessoas. Suzanne teve sua família e amigos assassinados por serem judeus. Quando ela perguntou se podia se livrar do sofrimento que todas essas memórias causavam, havia algo no olhar de Lacan que lhe dizia que se “se livrar” seria impossível. Ela precisaria viver com essa dor para o resto da vida. Nada seria capaz de lhe arrancar esse sofrimento. Há algo de intransponível, inalcançável e insuperável em certas dores. Tudo o que podemos fazer, como não haveria de ser diferente, é aprender a viver com elas.
Em uma das sessões Suzanne contou um sonho a Lacan: “Acordo todo dia às 5h. Era às 5h que a Gestapo vinha procurar os judeus em suas casas”. O psicanalista imediatamente levantou da sua poltrona e passou suavemente sua mão sobre o rosto dela, fazendo um geste à peau, gesto na pele em francês. Lacan ajudou Suzanne a ressignificar o seu sonho ao transformar a “gestapo”, polícia secreta do exército nazista, em “gesto na pele”. Podemos conferir essa história no documentário “Um encontro com Lacan”, em que Suzanne conta essa história : “(…) Um gesto extremamente carinhoso. E essa surpresa não diminuiu a dor, mas fez outra coisa. A prova, agora, 40 anos depois, é que eu ainda sinto esse gesto, eu ainda o tenho no rosto. É um gesto também… é um apelo à humanidade, qualquer coisa assim”. Discurso e ação unidos em um só, parafraseando Hannah Arendt. O apelo à humanidade expresso pelo gesto concreto.
E aqui reafirmo meu nojo e asco em relação aos Estados Totalitários que, nesse caso, diz respeito ao Estado nazista.
O desejo, aquilo que é pensado e também dito, se apresenta como fantasias, que podem ou não ser realizadas para satisfazer o sujeito. Assim como afirma Freud, esse desejo pode ser reprimido, pois seus pensamentos serão censurados e deformados pela atividade onírica. E nos sonhos os desejos correm soltos. Entrelaçar sonho e desejo é, muitas vezes, o trabalho de uma analista em algumas sessões no consultório.
— Eu não tenho a idade que tenho, eu tive que mentir várias coisas… Sou quase dez anos mais velha… Achei importante contar isso, pode ajudar você.
— Eu penso que a mentira tem uma função e, no seu caso, me parece que ajudou você. Mas sinto que você não está me contando tudo.
Eu também havia compreendido a relação do sonho com a frase que ela me dissera quando pisou pela primeira vez em meu consultório: “eu vim aqui para morrer". Desejo expresso também por meio do sonho, mas que a morte não era propriamente a morte física, mas o encontro com alguma coisa que estava relacionada ao seu desejo. E ao contrário do que se esperava de um psicanalista (se espera uma frieza inabalável de quem é psicanalista? foi assim que me ensinaram), naquela sessão em que eu entendi que quando ela conseguisse segurar a mão do seu pai, ela encontraria o que buscava…
CONTINUA…
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Recomendação de Leitura
O Primogênito do Sol
O livro não possui nenhuma ligação com o caso clínico exposto acima. Contudo, o personagem Jheremy Ravier Firenze, conhecido como Amonsehat, foi construído a partir do conceito de irreflexão da autora judia-alemã Hannah Arendt. Ele perde sua humanidade quando comete um genocídio logo no início da narrativa. No livro Eichamann em Jerusalém — Um relato sobre a banalidade do mal, Arendt expõe com maestria o que acontece com um ser humano quando comete crimes em larga escala em termos éticos e, digamos assim, psicologicamente. Pois, parar de pensar influencia em como considero o outro enquanto ser partícipe do mesmo mundo que eu.. e isso tem consequências. E no livro O Primogênito do Sol, Jheremy nunca mais se recuperou do que aconteceu. Mesmo que muitos anos depois ele encontrasse em Andrius um grande amor e viesse a constituir uma família com ele. Nenhuma dor pode ser apagada, especialmente aquelas que sequer conseguimos expressar em palavras. Clique aqui para conhecer o livro.
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Uma primorosidade e uma profundidade, praticamente psicoterapêuticas, transbordam neste texto. Me identifiquei, sim, exatamente na parte das dores que não podem ser esquecidas e nem apagadas porque fazem parte do Ser. Compreendo bem isto.
Excelente leitura, estou ansioso para continuação