A cruz, o fuzil e a estrela: o Brasil diante do narcopentecostalismo. Os traficantes que se veem como "soldados de Jesus". Só sei que foi assim #23
O símbolo religioso ali não reflete a fé judaica, mas sim a crença evangélica de que o retorno de judeus a Israel resultará na segunda aparição de Jesus Cristo. Com drogas e armado de fuzil?
O Alienista
Por Cristian Abreu de Quevedo
A expansão silenciosa de uma fé armada
Há símbolos que caem como pedras na água. A estrela de Davi despencando do alto da caixa d’água em Parada de Lucas, arrancada pela PM como se fosse possível arrancar o próprio delírio, não encerra nada. Ao contrário: marca o início de uma fase em que religião, crime organizado e imaginário nacional se entrelaçam numa nova gramática da violência. O Complexo de Israel não é apenas um território; é uma narrativa. E, como toda narrativa forte demais, não cessa de se expandir.
Nos últimos anos, o Terceiro Comando Puro (TCP) deixou de ser apenas uma dissidência do Comando Vermelho. Tornou-se o que a Abin já chamou de “terceira força emergente do crime no Brasil”. A geografia do grupo se espraia: Espírito Santo, Minas, Goiás, Bahia, Ceará, Amapá, Acre, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul. Como uma forma nova de evangelismo armado, o TCP se infiltra onde há vulnerabilidade, desigualdade e ausência do Estado.
O símbolo religioso: estrelas, grafites de Jesus guerreiro, frases como “Jesus é dono do lugar”, funciona como soberania. A fé não é mais só crença: é bandeira territorial.
Maracanaú, Pacatuba, Morada Nova: lugares onde a religião se arma, e o crime se liturgiza. Terreiros fechados à força, adolescentes temendo falar, escolas encerrando suas atividades por tiroteios diários. Um vilarejo inteiro se transforma em cidade-fantasma. O medo muda as rotas, separa famílias, cria fronteiras invisíveis dentro da mesma cidade.
E aqui aparece algo fundamental: o TCP chega não como invasor, mas como aliado. O Guardiões do Estado (GDE), enfraquecido, se converte em ponte. Facções se nacionalizam como empresas em expansão: procuram sócios, absorvem mão de obra, oferecem pertencimento.
O que quer o narcopentecostalismo?
Pesquisadores como Christina Vital e Kristina Hinz apontam um ponto decisivo: não se trata apenas de traficantes evangélicos. Trata-se de uma teologia adaptada à lógica da guerra.
O inimigo não é apenas o rival armado é o “diabo” que opera no território vizinho. A disputa de facções vira combate espiritual. A matança ganha justificação transcendental. O Comando Vermelho (CV) historicamente associado a símbolos de matriz africana, passa a ser representado como “o mal” a ser purificado.
Aqui, o Estado perde duas vezes: perde território e perde narrativa.
A religião como dispositivo de poder: o TCP não pratica uma teologia profunda. Não precisa. O discurso religioso funciona como cimento ideológico: cria unidade, produz sentido, organiza o caos.
Freud já dizia em “Totem e Tabu” que a religião nasce como tentativa de organizar o horror e o desejo de violência que coletivamente nos assombra. Aqui vemos isso de maneira literal: a religião serve como operador que dá nome ao que, de outra forma, seria inominável.
E Lacan talvez dissesse que, nesse contexto, o significante Deus não funda ética alguma, funda um mandato de gozo. Uma autorização para matar em nome do Bem. Eis a perversão estrutural: a fé usada para legitimar a própria transgressão.
Podemos falar em uma economia do caos: o TCP, aliado ao PCC e próximo de milícias, alarga suas fontes de renda: drogas, armas, extorsão, controle de serviços, apostas, internet clandestina. É um ecossistema econômico. E, como todo ecossistema, se adapta rapidamente.
A religião aqui não é oxigênio espiritual: é marketing político do crime.
Isso floresce porque o Estado brasileiro joga uma partida onde entra sempre atrasado. O Ceará se modernizou economicamente sem diminuir sua desigualdade. Cresceu, mas deixou buracos. Nos buracos, florescem facções. Nos vácuos, nasce a teologia do controle armado.
Quando a população carcerária tem 43% de evangélicos, não é porque o crime se converteu: é porque a religião se tornou a principal forma de pertencimento possível nas margens do país.
O que nos diz a queda da estrela?
Que símbolos podem cair, mas os delírios coletivos permanecem.
Que violência se veste de fé quando isso convém.
Que o narcopentecostalismo não é acidente: é sintoma.
Um sintoma do país que produz fé com cegueira, ordem sem justiça, Estado sem presença, e religião sem ética.
E nós, cidadãos, ficamos entre o espanto e a paralisia. Mas talvez devêssemos olhar para o fenômeno com menos moralismo e mais lucidez: não se trata de “criminosos religiosos”, mas de uma fusão entre espiritualidade e racionalidade empresarial do crime.
Uma fusão que não será desfeita pela retirada de um símbolo do alto de uma caixa d’água.
A cruz segue de pé. O fuzil também.
Não mexa na minha estante!

Acabei de ler e recomendo Como as Democracias Morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. O livro é direto, documentado e, ao mesmo tempo, perturbador não porque faça previsões apocalípticas, mas porque mostra como a morte de uma democracia raramente acontece com tanques nas ruas. Ela se dá em silêncio, pelas frestas, pela normalização de pequenos abusos, pela complacência diante do inaceitável.
Os autores analisam como lideranças autoritárias conseguem chegar ao poder pelo voto e, uma vez lá, corroem instituições fundamentais: imprensa, judiciário, oposição, regras do jogo. A eleição de Trump vira um ponto de partida para observar um século inteiro de derivas autoritárias da ascensão de Hitler e Mussolini às ditaduras latino-americanas, passando pela onda populista atual na Europa. O resultado é um diagnóstico que incomoda porque é realista: democracias não caem de repente; elas escorregam.
O livro termina como um alerta, mas também como um convite: reconstruir e proteger normas democráticas depende de cultura política, vigilância e participação não só de grandes líderes, mas de cada um de nós. É leitura urgente para quem quer compreender não apenas o mundo, mas a lógica que o ameaça.
Quem avisa…?
Apocalipse nos Trópicos, de Petra Costa - diretora do documentário indicado ao Oscar Democracia em Vertigem - estreia dia 14 de julho. No filme, a cineasta examina com profundidade a influência de líderes evangélicos na vida política do país.
Assista na Netflix: https://www.netflix.com/title/81989009
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