O Alienista
A cidade não funciona. Tenho observado a rotina das pessoas durante muitos anos atravessando desde avenidas até os morros, acompanhei as tragédias escorraçando nossa população deixando apenas vestígios de uma violência imaterial. A violência das memórias. Quanto mais o tempo passa nessa região mais se intensificam os sintomas amargos do apagamento.
Quando isso aconteceu? Eu não lembro. Você deve estar se enganando, não é possível que as pessoas tenham deixado isso passar por tanto tempo. Pois bem, aconteceu bem na frente dos meus olhos. Eu vi o rio se levantar e ir embora, levou junto às casas da tia Nicinha e tio Ravi. Assisti um primo sendo engolido pelos dejetos que eram arrastados ferozmente pela mancha amarronzada. O horror daquele dia não permitiu o sono um dia sequer durante quase um mês.
Um mesmíssimo sonho perturbava minhas noites. Ouvia o barulho da água correndo como o de trovoadas capazes de balançar prédios, minhas mãos seguravam as raízes da mata na tentativa de me socorrer enquanto meu corpo por pouco não se partia ao meio. Assistia meus amigos desaparecerem um a um na escuridão daquele rio em que costumávamos nos divertir e banhar. Haviam madrugadas em que acordei com pedaços de folha morta presas em minha garganta.
Lembro de passar alguns dias na casa de vizinhos, amigos da família. Nós dormíamos amontoados em quartos pequenos e acordamos com os barulhos das máquinas de construção invadindo a pista. Mainha não falava muito sobre como estava a situação da nossa casa, mas não voltamos para lá por quase um mês. A casa onde a gente morava ficava próximo da entrada do morro logo atrás da primeira ponte que passava por cima do rio, na época acho que não percebi o quanto havia mudado a visão daquela estrada de terra.
Depois que passou o mês só sobrou algumas matérias de jornal presas na parede de casa. A família nunca mais conseguiria se reunir no fim de ano. Uma camisa com a face estampada de Luciano. Um pedaço orgânico do luto sendo filtrado em cada pingo de chuva caindo das telhas Brasilit.
Nessa mesma época desaprendi a rezar para Deus. Eu me perguntava como ele conseguia continuar descansando depois de assistir tudo aquilo. Como que a dimensão da existência dele poderia ignorar a carga da dor que parecia infinita nos olhos da minha mãe. A natureza é mesmo tão indiferente.
Quinze anos depois aprendi que indiferente mesmo são os homens. A ajuda nunca chegou para aquela parte da cidade, não houve contenção de danos para melhorar a qualidade de vida da população. O bairro afundou poucos anos depois da tragédia. Vi a população aumentar, as construções crescerem e os marginalizados sendo massacrados pela desonestidade e corrupção que seguem sendo escondidas atrás de cartões postais, cidade das belezas naturais e o turismo (sexual).
Essa cidade engole a si própria como uma serpente cega atrás de uma presa. Não sei se agora vou ser capaz de salvar alguém, mas torno a caminhar em direção ao sol outra vez sabendo que não possuo a folga de um Deus.
Não mexe na minha estante!
A minha recomendação dessa semana será o mangá Dorohedoro, escrito e ilustrado por Q Hayashida. Somos apresentados primeiramente a Kaiman, um lagarto que engole cabeças para tentar descobrir sua verdadeira identidade, e a sua companheira Nikaido, uma humana com força sobrenatural e dona do restaurante conhecido como Hungry Bug. O autor tem um jeito único de contar a história de seus personagens, cada um deles tem características únicas em seu design, seja o formato do corpo, vestes, cabelo ou mesmo motivações, personalidade, etc.
Desde o primeiro capítulo fui raptado para os mistérios que envolvem nossa trupe o mundo em que eles vivem. Quem são os humanos e por que vivem em uma cidade tão decadente chamada Hole? Quem são os magos e como funciona o mundo em que eles vivem? O que, ou quem, transformou Kaiman em lagarto? Essas foram algumas perguntas que surgiram logo nos primeiros volumes do mangá e que nortearam a narrativa, tornando-se cada vez mais complexa e interessante ao longo da obra.
Fica a dica da minha estante dessa semana, mas não posso emprestar os meus para você!
Quem avisa…?
Estamos com um grupo de leitura na IS editora, a Máquina Crítica, e o primeiro livro a ser discutido será o Livro I de “O Capital”, de Karl Marx. Queremos que este grupo seja uma engrenagem viva de leitura compartilhada, onde cada voz contribua para movimentar a reflexão e ampliar nossos horizontes diante do mundo contemporâneo.
Os nossos encontros serão presenciais e quinzenais na livraria Vertov em Curitiba, então se você tem interesse em participar já responde o nosso formulário clicando aqui.
O nosso calendário semanal de publicações continua o mesmo de Segunda à Sexta, ocasionalmente podemos ter publicações especiais nos fins de semana.
Segunda: Só sei que foi assim… [esta news assinada pelas três vozes da Diretoria IS]
Terça: Autoras e Autores do Grupo do Substack IS
Quarta: Podcast IS por Welyson Pereira de Almeida.
Quinta: Varalzinho por Gabriel Bernardo (você já enviou o seu poema para nós?)
Sexta: Pipoca na manteiga por Cristian de Quevedo.
A Mesa de Jogo de RPG da IS, que você pode conferir clicando aqui.
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